“Percebi isto numa noite em que estava prestes a desistir. O mundo parecia suspenso, tal como aquele quarto vazio de gente. Fiquei a ouvir a respiração, a sentir o corpo lento e pesado, a imaginar como seria um herói se, simplesmente, apertasse a corda ao pescoço e derrubasse o banco que me sustentava. (…) Lembrei-me dos filhos, dos meus pais que emigraram para que pudesse ter a oportunidade que nunca tiveram. Lembrei-me das vezes em que acordava e corria para a janela apenas para saber se o Sol já tinha nascido. O quanto é que isto me fazia feliz.
(…)
Foi então aí, nesse preciso instante, que escutei outra coisa. Que o coração não bate sempre igual. Que a vida não acontece em linha reta. Que a nossa história é feita de oscilações, como as marés: aproxima-se, recua, volta a aproximar-se.”
Este foi um dos trechos de um texto que produzi para o Curso Avançado de Histórias de Vida que tirei em Oxford.
O poder das histórias de vida é imenso. Não só porque conseguimos integrar situações de vida, como nos é possível perceber e (re)interpretar o nosso presente. Por isso, e muito mais, a nossa narrativa é instável e tem de tudo um pouco.
Se te disserem que a tua história devia ser um percurso limpo, desconfia. O que nos faz humanos é a dinâmica. Sístole e diástole. Contração e descanso. Avanço e hesitação. Há dias em que pareces imparável e outros em que meia dúzia de passos custa uma eternidade. Mesmo assim, há um fio que te puxa para a frente. Quando quase desistimos, a vida pergunta baixinho se ainda queremos dançar. E tu, mesmo cansado, ainda respondes que sim.
Quero que olhes para a tua vida como quem abre um livro. Não é um relatório de feitos. É um mapa de forças em movimento. Aquilo que te empurrou, aquilo que te travou, aquilo que te devolveu ao centro. É nessa dança que descobres sentido. E quando o escreves, o que viveste ganha pertinência. A dor aparece com contornos. A alegria deixa rasto. O banal revela-se como sustento. Escrever a tua história é dizer ao tempo que valeu a pena passar por ti.
Talvez aches que não tens jeito. Que não sabes por onde começar. A verdade é que ninguém começa com jeito. Começa-se com verdade. E a verdade raramente é elegante ao primeiro rascunho. O que interessa é começares a mexer a memória até ela aquecer. Depois vem a cadência. Depois vem a tal dinâmica que te mostra padrões e significados.
Deixo-te uma dica prática para começares já, sem drama e com profundidade. Chama-lhe o método das três camadas. Pega numa folha e dá-lhe um título simples. A noite em que quase desisti. Define um temporizador de dez minutos. Escreve sem parar, sem corrigir, passando por três camadas, sempre na ordem.
O método das três camadas
Facto
O que aconteceu, em frases curtas. Onde estavas, que horas eram, quem estava por perto, o que fizeste primeiro e a seguir. Não adornes. Só o esqueleto.
Emoção
O que sentiste no corpo e no coração. Aperto no peito, nó na garganta, raiva, medo, cansaço, esperança. Usa verbos de sentir e palavras do corpo. Dá ritmo à tua respiração na escrita.
Sentido
O que essa noite te ensinou hoje, à luz do que sabes agora. Que decisão ficou diferente por causa dela. Que pequena fidelidade a ti mesmo nasceu ali. Termina com uma frase que comece por “Hoje reconheço que”.
Quando acabares, relê em voz alta. Sublinha uma frase de cada camada. Essas três frases, juntas, são um parágrafo de abertura para a tua história. Se te fizer sentido, repete o método para outros momentos marcantes. O dia em que chegaste, o dia em que partiste, o dia em que escolheste ficar. Em poucas sessões terás um esqueleto honesto e vivo. Depois podes aprofundar cenas, diálogos, cheiros, texturas. A dinâmica nasce do detalhe.
Escreve para veres com os teus próprios olhos que o que viveste tem peso e lugar. Escreve para dares gratidão ao que te trouxe até aqui. Escreve para te reconheceres. A tua história é única. E merece ser contada por ti.
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