A capela estava completa de pessoas, flores e imersa num estridente burburinho. Cada olhar permanecia tenso, mudo, bem característico de quem está perante a morte de alguém próximo. Eu estava exausto — era, afinal, o velório da minha mãe —, a viver um daqueles momentos em que a dor nos atravessa com uma lâmina. Foi então que entraram duas vizinhas, conhecidas por nunca deixarem escapar um comentário, as típicas “bilhardeiras” (cuscas). Aproximaram-se do caixão, observaram o corpo durante alguns momentos, até que uma delas disse: “Está tão bem vestida, até parece que vai a uma festa.” A outra concordou e, sem demora, começaram a discorrer sobre a cor do casaco, o penteado…
No meio do absurdo, e reagindo de uma forma que até a mim me surpreendeu, soltei uma gargalhada. Era desconcertante, quase impróprio, mas real.
Anos mais tarde, e já trabalhando com histórias de vida, percebi que, naquele instante, não havia mal algum o humor fazer parte daquele cenário. Na verdade, o humor enriqueceu, à sua maneira, a situação.
Quando escrevemos a nossa história, o humor é um aliado precioso. Dá-nos liberdade para reinterpretar momentos e olhar para os mesmos de outro ângulo. Um episódio embaraçoso pode tornar-se uma boa história para contar à mesa. Um funeral pode guardar uma centelha de ironia. Ao introduzirmos humor, a narrativa ganha flexibilidade: deixa de ser rígida e transforma-se em algo vivo, capaz de provocar tanto um sorriso como uma lágrima.
Proponho-te um exercício simples, a que chamo de Técnica de Inversão Narrativa (aplicada a este caso):
- Escolhe um episódio marcante: pode ser doloroso ou apenas constrangedor.
- Descreve-o de forma direta, registando factos, locais e emoções.
- Reescreve a mesma situação com humor: exagera um detalhe, dá voz a um objeto da cena ou imagina como soaria a versão contada num espetáculo de comédia.
- Lê as duas versões em voz alta e compara o efeito que produzem.
Ao experimentares este exercício, vais perceber que a tua memória não é um registo imutável, mas um espaço aberto onde o humor convive com a seriedade. O humor não elimina o que aconteceu, mas permite outra perceção. Mostra que a tua história integra fragilidades e momentos leves, e é nesse contraste que encontra a sua vitalidade.
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