Há mensagens que nos chegam com uma força tão grande que sentimos imensa dificuldade em gerir as emoções que sentimos. Tal aconteceu quando li o livro “Óscar e a senhora cor-de-rosa” de Eric-Emmanuel Schmitt.

No meu trabalho enquanto biblioterapeuta procuro sempre desmistificar o turbilhão de sentimentos e comportamentos menos positivos que os pacientes têm quando vêm falar comigo. Dar-lhes clareza, perspectiva e ferramentas que possibilitem avançar com a sua vida da forma que sempre ambicionaram é, para mim, o meu objectivo primordial.

Contudo, um processo de biblioterapia não se esgota nisto. A biblioterapia mexe bem fundo nas pessoas que, através da leitura, vão superando os seus desafios em cada linha, parágrafo e capítulo de um livro que lêem. Há clientes que reencontram uma sensação de bem-estar, outros que entram em processo de catarse e assim “limpam” as suas mágoas e desbloqueiam medos e fobias. Muitos também fazem as pazes com o passado e libertam-se dos grilhões que os aprisionam. Todos saem diferentes de como entraram. Costumo dizer que sempre que alguém participa numa das minhas sessões de biblioterapia  tem à sua espera não um terapeuta, mas todo um universo de terapeutas: os livros.

Os casos que mais me marcam são aqueles em que a pessoa consegue verdadeiramente recuperar partes de si que algures perdeu. Ou com a morte de alguém, ou com um sonho não concretizado, ou com um desgosto de amor, ou com uma doença, ou com uma depressão, ou mesmo com uma situação em que se perdeu algures pelo caminho.

Quando oriento alguém a partir de uma consulta de biblioterapia tenho em consideração um conjunto de variáveis, que nem sempre são as mesmas. Os desafios podem até coincidir. Mas a forma como cada um vive um drama é totalmente diferente. Necessito de me conectar com a pessoa. Por vezes, até viver um pouco da sua dor para que consiga, realmente, entender o estado em que essa pessoa está.

Muitas pessoas já passaram pelas minhas consultas. Não sei ao certo quantas. Na verdade, isso não me interessa mesmo nada. Todos os dias cumpro o meu propósito com alguém. Se podemos contribuir para que uma pessoa adormeça com um sorriso nos lábios, por que não fazê-lo?

Como deves calcular necessito de ler muito. Mesmo muito para que possa realizar o meu trabalho como deve ser. Não sugiro nenhum livro que não saiba que possa funcionar com determinada pessoa numa situação específica. Um dos primeiros passos é lê-lo. Tendo isto, estou em constante processo de autobiblioterapia.

Sou muitas vezes surpreendido pelos livros que leio. Por vezes, trazem-me uma perspectiva nova, por outras ativam-me situações que desconhecia em mim. Um desses livros foi “Óscar e a senhora cor-de-rosa” de Eric-Emmanuel Schmitt.

A narrativa conta a história de Óscar, um menino com 11 anos que está em fase terminal com leucemia, e de uma voluntária que, através da sua sensibilidade e habilidade em fazer sonhar os outros, acompanha os últimos momentos de Óscar. Até aqui tudo bem. Já li milhares de páginas que me fizeram chorar verdadeiramente. Mas esta foi especial.

Tal como Óscar, eu passei uma temporada no hospital. Tinha uma idade diferente e um quadro clínico que, felizmente, em nada se comparava com o dele. Porém, e logo nas primeiras páginas, dei por mim no hospital com 5 anos.

Nessa fase da minha vida nada era relativizado. O fato de a minha mãe e de o pai não poderem ficar comigo de noite era visto como abandono. A razão pela qual estava ali era-me completamente desnecessária. A realidade de levar tantas injecções de cálcio e de outras substâncias era um mal que me faziam, mesmo que “aceitasse” ser persuadido a ser o primeiro de todos os que ali estavam internados, era sentida como uma ferida que se alastrava de uma forma tão profunda que me magoava imenso. Chorar para mim não era raro, mas uma competência que adquiri e na qual me refugiava.

Com o tempo de internamento veio o trauma e com este a gaguez. Mas o pior nem era isso, mas sim o esquecimento. Simplesmente bani para recantos profundos da minha memória parte da minha vida. Mesmo os bons momentos, que certamente passei no hospital, foram como que apagados.

Tudo correu bem. Fiquei curado! Hoje em dia ando normalmente (até pratiquei desporto federado) e sinto-me muito grato quer pelo contínuo amor e esforço dos meus pais, quer pela eficácia da equipa médica que me acompanhou.

À medida que crescemos tudo se torna diferente. Vêm as relações, as decisões, o trabalho, a família. Ganhamos maturidade a troco de responsabilidade. Tornamo-nos adultos e de nós é exigido que façamos uma boa gestão de tudo, incluindo das emoções.

Considero que é mais fácil gerir o quer que seja quando temos pleno conhecimento de todos os factores envolvidos. E quando algo falha consistentemente cabe-nos a tarefa de tentar perceber o que nos falta para resolver a situação.

Sou humano. Cometo erros. Aprendo. Tento seguir em frente. Mas como poderia lidar comigo mesmo a cometer incessantemente os mesmos erros? Cheguei mesmo a pensar que a minha personalidade não passava de um beco escuro sem saída em que a minha sombra era maior que a minha luz. Muitas foram as vezes em que acordei durante a noite numa angústia profunda.

Quando o que nos falta está em nós
Fui acompanhado por muitos médicos. Psicólogos, psiquiatras, neurologistas, médicos de clínica geral, terapeutas da fala. Enfim… uma panóplia de profissionais que tentaram a todo o custo dar-me aquilo que eu já tinha só que não sabia (ou não queria aceitar que tinha). Todos eles me deram diagnósticos e medicação, mas nenhum me abriu a mente e o coração.

A peça mestre continuava a faltar-me. Sentia-me constantemente angustiado e a minha energia andava sempre em níveis negativos. Era, por assim dizer, uma pessoa que viva entre um conto de fadas e um conto de Lautréamont.

Como consequência disto a vida pura e simplesmente estagnou. Sonhos adiados, reacções menos felizes com as pessoas que mais amava, traições a mim próprio, projectos adiados… Estás a ver o filme, não estás?

Com o coach e a leitura encontrei o caminho a seguir. Mas o facto de termos um caminho, que sabemos ser o mais certo, não quer dizer que o sigamos. As peças continuavam a não encaixar e eu continuava perdido e revoltado.

Costumo dizer que qualquer terapia funciona desde que a pessoa queira e o terapeuta seja competente. Entreguei-me à leitura, com a qual ia descobrindo partes ocultas de mim próprio. Estranho o sentimento de quando lemos algo que aparentemente não nos diz respeito mas que acaba por fazer todo o sentido.

Imergi num processo de autobiblioterapia. Fui fundo. Suficiente longe para descobrir o que me faltava.

Uma leitura que nos cativa, provoca e expande é aquela que vai “sacando” de nós os sentimentos, as acções e as imagens que temos tão fundo que nem sabíamos que estavam lá. E são esses que nos ajudam a perceber e a aceitar quem verdadeiramente somos e a razão de sermos como somos.

Com a minha estadia no hospital muitas imagens foram como que extintas. Desde a despedida dos meus pais ao final de uma visita até aos constantes exames médicos que me faziam não me lembrava de nada.

Inconscientemente sentia-me abandonado. Paradoxal porque ninguém me abandonou. Os meus pais não me abandonaram. O meu irmão não me abandonou. O mundo não me abandonou. Mas na cabeça de uma criança de cinco anos é assim que as coisas se passam. Não temos uma experiência de vida capaz de decifrar os momentos de dor.

O livro “Óscar e a senhora cor-de-rosa” ajudou-me nisto. Fez-me voltar ao hospital e analisar a situação doutra perspectiva. Deu-me imagens tão reais desses momentos que, assim que entrei na personagem e no contexto de Óscar, as lágrimas caíram-me sem que me avisassem. Percebi que não tinha sido abandonado e consegui recuperar imagens que estavam gravadas em lugares quase inacessíveis na minha memória.

Este livro deu-me liberdade e ajudou-me a sarar uma ferida antiga. Por incrível que pareça, até me recordei de uma festa de carnaval na qual participei no hospital e me diverti imenso.

Esta história pessoal que partilho contigo mostra o quanto a leitura é crucial para curarmos o que julgávamos incurável e para avançarmos com a nossa vida. Mostra a verdade crua e dura de alguém que reencontrou a felicidade e a paz ao ler um livro. É assim que a biblioterapia atua.

Óscar desejava que Deus se manifestasse na sua vida. Que estivesse presente nos seus últimos momentos e que lhe trouxesse o conforto espiritual que necessitava para poder se entregar. O personagem Óscar fez mais por mim do que muitas pessoas.

“Só Deus está autorizado a acordar-me” é a frase final do livro. Óscar insistia em ver Deus. Mas Deus honrou-o com algo ainda mais valioso. Permitiu que este livro chegasse até mim e a milhares de pessoas em todo o mundo.