Foi no ano 2000 que estava numa sala perante 25 pessoas a dar, ao que eu agora chamo de, a minha primeira sessão de motivação para a leitura.
O grupo era homogéneo sendo as suas principais características: baixo nível de literacia ; faixa etária entre os 30 e os 45 anos; mães; desempregadas ou com empregos precários; poucos ou mesmo nenhuns hábitos de leitura.
O convite para dar esta sessão chegou através de uma directora de uma escola primária que frequentava regularmente a biblioteca onde trabalhava na altura.
O combinado seria incentivar os participantes para a leitura para que, após esta primeira tarefa, tivessem a abertura suficiente para trabalhar a leitura com os seus filhos em casa.
Não hesitei em aceitar o desafio dado que trabalhava diariamente com crianças e sabia exactamente o que dizer e que técnicas partilhar para que, mais cedo ou mais tarde, os resultados começassem a aparecer. Pelo menos era esta a minha convicção!
Sabem aqueles dias em que tudo parece claro e misterioso ao mesmo tempo? Foi com este sentimento que iniciei a minha pequena palestra nesse sábado transformador.
Levava algum material de apoio: um folheto com obras seleccionadas por faixa etária; um conjunto de livros infantis da biblioteca; até a bula de um medicamento que pretendia utilizar para demonstrar a importância da leitura no dia-a-dia de todos nós.
Tinha tudo preparado. Segundo o guião a sessão duraria entre 45 minutos a 1 hora.
Após apresentar-me e agradecer o convite à directora passei a palavra a cada uma das participantes para que também se apresentassem e partilhassem, de forma breve, a sua experiência com a leitura. Se liam; se sim, o que estavam a ler; que tipo de livros tinham em casa; se contavam estórias aos filhos; se os incentivavam a ler; se iam à biblioteca com eles. Este género de questões.
A maioria de nós que está a ler ou lerá este texto tem a garantia e a certeza que a leitura é importante. Tão importante, tão importante, que assumimos sem pestanejar que todos os seres deste mundo e do outro também sabem disso.
A esta atitude chamo de síndrome “se eu sei todos têm de saber”. Uma espécie de comportamento muitas vezes responsável pela falha de comunicação e pelo afastamento das pessoas de oportunidades únicas de crescimento.
Portanto, e para mim, ter este tipo de atitude é bem mais grave do que não saber que A LEITURA É MESMO FUNDAMENTAL À VIDA!
De volta à sessão:
Continuei a ronda até passar por todas as participantes. A parte seguinte seria para mim a mais excitante. Falaria da minha experiência enquanto leitor; da importância das bibliotecas e da leitura para o desenvolvimento das crianças; do benefício em termos de rendimento escolar e, acima de tudo, no aprofundar de relações entre pais e filhos através de deliciosos momentos de leitura.
Tudo corria de acordo com o guião até que uma mãe que estava sentada mesmo nos lugares da frente lançou a reviravolta no que tinha programado com a seguinte afirmação: “o meu pai e a minha mãe não sabiam ler, eu e o meu marido pouco lemos. Mas quero que os meus filhos leiam porque me dizem que é importante para eles. Talvez arranjem um emprego melhor que o meu e que o do pai que já está desempregado há 2 anos. Mas há uma coisa que não consigo perceber. Se a leitura é tão importante assim porque é que eu ainda nem toquei nos livros que tenho em casa que eram do meu pai?”
À primeira vista a resposta parecia óbvia. Mas continuar com a sessão dando uma resposta banal ou mesmo utilizar a técnica do chavão (tipo “já experimentou ler algum?” ou “é normal numa família em que os pais não lêem os filhos terem mais dificuldade em ter hábitos de leitura”) enquadrar-me-ia naquele grupo que padece da síndrome “se eu sei todos têm de saber”.
Esta questão fez-me equacionar tudo. E como a partir desse dia o mundo mudou, para mim, o seu movimento de translação!
Por mais livros que existissem e por mais potenciais leitores que me aparecessem pela frente eu nunca cumpriria a minha função se não tivesse a capacidade de criar pontes entre os dois. Só depois desta ligação é que poderia trabalhar o impacto da leitura e por conseguinte o sucesso de cada pessoa através da leitura. Existe sempre uma verdade em cada fracção de tempo. E não viver uma fracção significa não viver parte da verdade.
Estava tão longe do que dizia e certamente não tinha avaliado bem o contexto da audiência. Pois parecia que toda a estatística que tinha recolhido não me estava a ajudar. Afinal os números certos não passam de uma coisa…. de números.
Poderia estar a falar para uma audiência que até me estava a dar uma oportunidade sem que eu estivesse a retribuir. Estranho, não é? Pensamos que damos bolinhos da sorte com frases inspiradoras, quando na verdade não estamos a dar nada.
Continuei a sessão remetendo a resposta para aquilo que me veio, no momento, à cabeça: “depois apareça na biblioteca e falamos mais a fundo nisso”. Ou seja, dei uma resposta pior que banal.
Mas foi esta atitude que me obrigou a pensar diferente e me possibilitou outra perspectiva acerca de mim próprio e do trabalho que realizava. Permitiu-me crescer enquanto profissional e adquirir uma visão mais elástica acerca da leitura. Foi a partir desta fase que passei a assumir “que não faço promoção da leitura mas que ajudo pessoas a promoverem-se através da leitura”.
Ajudar pessoas através da leitura para que consigam viver uma vida plena é como ensiná-las e atravessar a linha do comboio. Não basta dizer-lhes que existem ambos os lados da linha e que em cada um se vivem experiências diferentes. É também importante evitar que se atravesse a linha quando o comboio está a passar.
Mas o que é este comboio?
Este comboio pode ser uma escolha menos feliz de um livro; um contexto mal interpretado; uma leitura mal integrada; uma base pouco fundamentada; um impacto pouco trabalhado.
Parar, escutar e ler são assim verbos determinantes para quem vive e vê na leitura uma forma de atingir o sucesso.
Parar para que penses e analises as várias formas de intervir no contexto em que te moves; Escutar para que te oiças a ti mesmo por dentro e reconheças a tua essência; e Ler como forma de agires e promoveres em ti a verdadeira transformação.
Não basta que tenhas as estantes de casa com livros se não vês nessa verdade a tua verdade. Do mesmo modo, não chega leres se não integrares na tua vida o que lês.
O homem ultrapassa-se a si mesmo não pelo que quer ser mas pelo que é!
Bem sejas!!